Direito Constitucional - Liberdade de Expressão x Violência: Ministros da Suprema Corte dos EUA jogaram videogame para decidir caso

27/08/2013 10:31

A Suprema Corte Americana mostrou, mais uma vez, porque aquele país (EUA), apesar de tantas críticas pelas ações de espionagem (recentes), guerras  e intervenções mundo afora (inclusive com apoio a vários governos ditatoriais no passado não tão remoto), ainda pode ser considerado um país que prima pela liberdade (neste caso específico, a liberdade de expressão)! 

Poderia ser até contraditório o que acabamos de afirmar nas linhas acima, já que o mesmo país que prima pela liberdade de expressão no caso abaixo narrado, está movendo verdadeira caçada a um ex-funcionário que divulgou a (reprovável) prática de espionagem (interceptação telefonica e de dados), em todos os continentes do globo (inclusive de governos, como no caso do nosso Brasil),  por agências de espionagem americanas. 

Bem, não vou adentrar no mérito da questão acima, haja vista que, apesar de moralmente reprováveis, os atos praticados pelas agências de segurança (e espionagem, a exemplo da NSA e CIA) eram sigilosos, e portanto, secretos. Ao divulgar informações sigilosas, o referido ex-funcionário cometeu crime federal, legalmente tipificado no ordenamento jurídico americano, devendo, portanto, responder criminalmente por seus atos (ainda que moralmente justificáveis).

Porém, como dito acima, não vamos enveredar por tal caminho, por entender que o debate, neste caso, renderia várias páginas de reflexão, podendo desdobrar-se, além do previsivel direito penal americano, e pelo direito internacional, igualmente pelo caminho filosófico.

Desta forma, nos ateremos ao caso proposto, que é abordar um dos princípios básicos de qualquer ordenamento jurídico democrático: a Liberdade de Expressão.

No Brasil, de acordo com a Constituição Federa de 1988, a "Liberdade de Expressão" foi alçada a categoria de princípio constitucional irrevogável, "cláusula pétrea", e portanto, irrevogável:

"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vidaliberdade,igualdadesegurança e a propriedade, nos termos seguintes:

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença."

"Art. 220º A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

 

§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística."

Pois bem, dito isto, importa destacar que, da mesma forma que no Brasil, nos Estado Unidos da América (EUA), a liberdade de expressão também é alçada à categoria de fundamento do próprio Estado Democrático de Direito (talvez até mais arraigado por lá).

Dentre inúmeros casos julgados nas cortes americanas, podemos citar rapidamente o emblemático caso "Falewll x Larry Flint", batalha judicial travada contra o então Editor (e proprietário) da revista pornográfica "Hustler Magazzine", que chegou à Suprema Corte norte-americana, tendo como desfecho a garantia da liberdade de expressão.

Naquele caso, a Suprema Corte norte-americana, em suma, entendeu que a "brincadeira" publicada por Flynt estaria protegida pela liberdade de expressão. Em resumo, argumentou-se que: a) “a livre circulação de idéias encontra-se no coração da primeira emenda” (primeira Emenda Constitucional americana); b) as figuras públicas estão sujeitas a uma crítica mais intensa da mídia e do público de um modo geral; c) que as sátiras estão protegidas pela liberdade de manifestação de pensamento; d) que mesmo os discursos ofensivos e desagradáveis estão, em princípio, protegidos pela liberdade de expressão, ainda que a sociedade não simpatize com as idéias. (Para ver os argumentos na íntegra, em inglês, basta clicar aqui)

Fato é que, apesar das diversas discussões acerca dos limites legais da liberdade de expressão (naquele caso, uma sátira de uma figura pública, no caso, o Reverendo Jerry Fawell, com conotação sexual, com fins comerciais), prevaleceu a "Liberdade de Expressão". 

No Brasil, as batalhas judiciais entre "liberdade de expressão" e "figuras públicas" vem tendo resultados diversos, como o caso de Jô Soares, que obteve a poribição de veiculação no programa humorístico "Pânico na Band", de um quadro no qual o personagem era uma sátira ao seu programa jornalistico (e a sua imagem).

Fato é que sempre teremos batalhas árduas travadas nos tribunais, entre a prevalência da "liberdade de expressão" e a garantia da "inviolabilidade da honra e imagem", ambas alçadas à categoria de cláusulas pétreas por nossa Constituição Federal de 1988.

E não é diferente no Judiciário Norte-Americano, onde diariamente ocorrem batalhas onde um dos pólos é justamente a "liberdade de expressão", que ao meu ver, (quase) sempre sairá vencedora.

Nesta linha, vale transcrever uma recente decisão da Suprema Corte, na qual se discutia a constitucionalidade  de uma Lei do Estado da Califórnia, que impunha censura a jogos eletrônicos taxados por "violentos", restringindo sua comercialização.

Apesar da referida Corte Suprema ser composta por Ministros com uma idade média de 68 anos, e portanto, pouco familiarizados com os avanços tecnológicos (ao ponto de não se comunicarem por e-mails), a decisão proferida acerca da supracitada Lei Californiana, apesar de contrária, inclusive, à opinião pessoal dos próprios Ministros, mais uma vez garantiu a supremacia da "Liberdade de Expressão".

Vale a leitura da matéria veiculada pela Conjur, a seguir transcrita:

"Os ministros da Suprema Corte dos EUA são "tecnologia-resistentes" — isto é, resistem em adotar novas tecnologias. Os ministros sequer se comunicam por e-mail. Até hoje usam papel na cor marfim para escrever memorandos que mais parecem peças do Século XIX. Auxiliares de gabinete percorrem o tribunal entregando os memorandos, enquanto os assessores mais novos dos ministros estão se comunicando pela internet.

A ministra Elena Kagan, de 53 anos, a mais nova da corte, "dedurou" os colegas durante um debate na Universidade de Brown, em Rhode Island, sobre as espionagens da Agência Nacional de Segurança (NSA) das comunicações eletrônicas dos americanos e estrangeiros. Ela também é resistente a novas tecnologias, confessou. Mas, pelo menos, usa e-mails, segundo o Slate, um site especializado na Suprema Corte, e outras publicações.

Para ela, será um problema se esse caso chegar à Suprema Corte e os ministros tiverem de entender como o sistema de interceptação de comunicações funciona. Casos tecnologicamente complexos podem começar a chegar à Suprema Corte, como é de se esperar. Aliás, já começaram a chegar.

A resistência intelectual dos ministros à tecnologia — isto é, a dificuldade de entender a parafernália tecnológica das novas gerações — preocupa até a eles mesmos, ela disse. A obrigação deles é entender e julgar os casos do ponto de vista jurídico. Mas, naturalmente, querem conhecer o contexto em que a lei se aplica. E se esforçam para aprender.

Recentemente, eles deram uma prova disso, disse Elena Kagan. Jogaram videogames para entender melhor um caso. Eles tinham de julgar uma lei da Califórnia que proibia a comercialização de videogames com conteúdo violento. Mas, antes disso, queriam perceber — e sentir — os efeitos que tais jogos poderiam exercer sobre as pessoas.

O ministro Samuel Alito se encarregou de instalar em uma sala do tribunal um Xbox (ou seria um PlayStation? Ela não sabe a diferença). Só sabe que"foi hilariante ver um grupo de ministros entretidos com videogames", ela disse. Alito fez "uma pesquisa considerável e identificou videogames que continham uma violência estarrecedora", escreveu o ministro Antonin Scalia, segundo registros da corte. Em seu relatório, Alito observou:

"Em alguns desses jogos, a violência é estarrecedora. Vítimas são mortas às dezenas, com todos os implementos imagináveis, como metralhadoras, revólveres, porretes, martelos, machados, espadas e motosserras. As vítimas são desmembradas, decapitadas, estripadas, queimadas e cortadas em pequenos pedaços. Elas gritam, em agonia, e imploram por misericórdia. O sangue jorra, borrifa e empoça. Partes separadas de corpos ou restos humanos são graficamente mostrados. Em alguns jogos, pontos são atribuídos não apenas pela quantidade de vítimas, mas também pela técnica empregada para matar."

A sensação de matar na literatura é diferente, escreveu Alito, mesmo quando a descrição é muito boa. "Tome por exemplo a passagem de Crime e Castigo [de Dostoiévski], em que Raskólnikov mata a dona da casa de penhores a machadadas. Mas apenas um leitor com imaginação extraordinária, que lê a descrição de um assassinato em uma obra literária, irá vivenciar profundamente esse evento na mesma dimensão de quem exerce o papel de um assassino em um videogame", ele escreveu.

Os ministros aplaudiram o relatório de Alito, mas derrubaram a lei da Califórnia que proibia a venda de videogames com conteúdo violento, por 7 votos a 2. Alito, por sinal, votou contra a lei, por considerá-la muito vaga. No voto da maioria, Scalia escreveu que o relatório de Alito causou repugnância a esses videogames, em todos os ministros. "Mas repugnância não é uma base válida para se restringir a liberdade de expressão", declarou.

"Nos idos de 1800, as novelas baratas, que descreviam crimes apavorantes, eram responsabilizadas por parte da sociedade pela delinquência juvenil. Mais recentemente, a culpa foi jogada no cinema e na televisão", ele escreveu, para isentar os videogames dessa mesma responsabilidade.

"É claro que ler a obra de Dante [Alighieri] é uma atividade inquestionavelmente mais refinada e intelectualmente edificante do que jogar Mortal Kombat", escreveu Scalia. "Porém, essas diferenças culturais e intelectuais não são questões constitucionais. Videogames cruelmente violentos, programas de televisão de mau gosto, revistas e livros baratos não são menos uma forma de expressão do que a Divina Comédia", ele concluiu."

A referida decisão merece nossos aplausos, tanto pela inusitada "imersão na realidade" a ser julgada, como pelo compromisso (material e procesusal) com a Constituição Federal. Ponto para a "Liberdade de Expressão"!